A pedagogia de Paulo Freire: a
propedêutica de uma revolução esvaecida[i]
Marcos
Marques de Oliveira[ii]
“Eu preferia vir para o Conselho,
porque o problema de ser professor para mim não se coloca”.
(Freire
apud Cunha, 2021)
Em primeiro lugar,
Rafael e Sávio, meu agradecimento pelo convite – que me faz retornar a esta
casa, na qual pude me formar, no ano de 2000, obtendo o mesmo título que você (Rafael)
agora irá obter: que é o de Mestre em Ciências Políticas pela Universidade
Federal Fluminense. E retorno agora para uma tarefa bastante prazerosa – que é
de análise do seu trabalho “Paulo Freire e o Estado: crítica de seu pensamento
político-pedagógico”. Uma leitura, acima de tudo, enriquecedora já que ilumina
aspectos da trajetória e da obra de Freire que costumam ser desconsiderados em
estudos mais hagiográficos.
Não que você tenha
realizado uma “desconstrução” demolidora da chamada “pedagogia freiriana” – tal
como se tornou moda nos últimos anos por alguns grupos que querem mais
confundir, por motivos ideológicos, do que compreender[iii].
Não é o seu caso. Muito pelo contrário, creio que o principal mérito da sua
dissertação é localizar detidamente, no pensamento político-pedagógico do nosso
“Patrono da Educação Brasileira”, suas virtudes e seus limites fulcrais.
Fica evidente, pelo
caminho metodológico traçado, com a devida coleta dos dados na vasta obra, já
bastante comentada, que a “ética do encontro” freiriana, como prática
pedagógica, encontra barreiras estruturais na tibieza de suas perspectivas
institucionais para o campo educacional – que se existissem teriam que esperar o
anunciar de um novo mundo que, pelo que parece, pode mais não vir. Claro, é
mais fácil falar daqui de 2024, quando vivemos uma nova quadra histórica, bem
diversa daquela que Freire foi testemunha.
O sociólogo Florestan
Fernandes, seu contemporâneo, também aderente à mesma utopia revolucionária
(Oliveira, 2010), desta forma desenhava aquele mundo[iv]:
Nós não vivemos em uma época em
que a revolução socialista seja alguma coisa meramente hipotética. Não é uma
hipótese científica, nem uma probabilidade histórica. A revolução socialista
ocorreu em uma porção de nações. Nós podemos dizer que o socialismo, hoje, é a
alternativa para o padrão de civilização moderna decorrente do capitalismo.
Isso quer dizer que o socialismo oferece um padrão de integração da civilização
moderna alternativo. Quer dizer que o socialismo define um padrão para essa
civilização. (...) E essas sociedades socialistas hoje constituem,
aproximadamente, um terço da humanidade. Portanto, não se trata de uma mera
probabilidade de cientistas políticos engenhosos. (Fernandes, 2021, pp. 30-31)
Hoje, mesmo o
esquerdista mais empedernido tem ciência de que as condições “objetivas” são
outras. E que grande parte do que foi teorizado àquela época, senão deve ser esquecido,
muito menos pode ser simplesmente reproduzido. Porém, o que nos interessa aqui
é avaliar se sua hipótese foi devidamente comprovada. Do meu ponto de vista, de
um sociólogo emaranhado nas questões educacionais, o caminho discursivo
trilhado na dissertação confirma que sim. A despeito do desejo freiriano de
“conciliar a luta social por superação da dominação de classe”, através do que
você identifica como “humanização do sujeito social”, esbarrou, como já dito,
nos limites de suas “ideias institucionais” – que, por suas características
mais teleológicas do que pragmáticas, pouco, muito pouco, pôde contribuir para
a “educação pública praticada no Brasil”.
Ou, nos termos dos
“pioneiros” da Educação Nova, pouco pôde contribuir para a conformação de um robusto sistema de
ensino de educação popular que fosse capaz de colaborar para um processo de
desenvolvimento social, cultural e econômico adequado às aspirações de uma
sociedade mais pujante e menos desigual. Um sistema que deveria ficar a cargo do
Estado, como todo e qualquer liberalismo genuíno, com um mínimo de sensibilidade
social, previu – desde Adam Smith a John Stuart Mill, passando especialmente pelo incontornável John Dewey. Um sistema que, só assim,
poderia dar a devida garantia da universalização das oportunidades de formação
e mobilidade social. O que é fundamental, mesmo numa perspectiva elitista, que
se quer minimamente democrática, para a mais efetiva alocação dos recursos
humanos na cada vez mais intensa, extensa e complexa divisão social do trabalho.
Claro que é preciso
considerar, nesse processo, que há algum sentido na desconfiança freiriana nas possibilidades
de intervenção do poder público na “mudança social almejada” por ele,
especialmente no que tange às condições concretas de edificação de um sistema
público de ensino num país capitalista, porém periférico. Afinal, considerando
novamente o contexto histórico do desenvolvimento de suas ideias e aspirações,
após um período bastante promissor, no nosso interregno democrático que vai de
1945 a 1964, que você aborda especialmente no Capítulo 1, o advento da nossa
desventura ditatorial mais recente (a que se iniciou em 1964) foi um choque que
não pode ser desconsiderado.
Desta forma, é
possível, sim, compreender, como você bem faz, referenciado na obra seminal de Vanilda
Paiva (2000), os motivos que colaboraram na transição da “síntese
existencial-culturalista” do pensamento freiriano, que se inicia com a filosofia
existencialista cristã então em voga, até culminar na adoção das sedutoras
categorias marxianas também, à época, bastante promissoras. Essa “deriva
marxista” que acaba por redundar num imenso movimento de um “catolicismo
progressista” é, inclusive, como sabemos, um fenômeno que ultrapassa a aventura
educacional freiriana – sendo o amálgama que vai redundar na configuração de
dois dos mais significantes movimentos políticos da nossa contemporaneidade: que
é, no campo partidário, o surgimento do Partido dos Trabalhadores; e, no
terreno dos movimentos sociais, o advento do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem-Terra (MST).
Certo, como você bem
nota, que no caso freiriano essa transição não é “absoluta”, já que se realiza
como uma “sobreposição” – na qual o “personalismo” cristão acaba por se
articular com as “múltiplas determinações de classe” identificadas pelas
filosofias, que se querem materialistas, das tradições mais marxistas do que marxianas
(Oliveira, 2013). De toda forma, é correta, do meu ponto de vista, que esta síntese
irá denotar uma concepção peculiar de “educação popular”, que passa a ser
entendida, como você bem descreve, como uma “propedêutica” revolucionária – que
toma como secundária a capacidade de todo e qualquer agenciamento do ensino
governamental sob o capitalismo (especialmente sobre o capitalismo
“periférico”)[v].
Nessa idealização
imagética, também como você observa, o papel reservado à política
institucional, inclusive no campo educacional, é subsumido ao propósito de
utilização de toda e qualquer agência governamental à construção de uma futura
sociabilidade – o que termina por desconsiderar, quase sempre, as
possibilidades mais concretas de melhorias imediatas. Por questões de tempo e objetividade, não vou
aqui me debruçar sobre as seminais experiências de Paulo Freire em Chile e
África, delineadas na dissertação – e que perfazem as tentativas dele em
colocar em prática seu modelo pedagógico “participacionista”, de base
“culturalista” e de vinculação com o “pobrismo”. Experiências distintas,
diga-se, mas que se interligam por serem contextos ricos de tentativas
reformistas ou revolucionárias de transmutação da ordem vigente. E que, por
fim, acaba por servir de sedimentação para a grande prova que virá com a sua
indicação para gerir a Secretaria de Educação da principal cidade do país – a
partir da eleição de Luiza Erundina, em 1989, na cidade de São Paulo (SP)[vi].
Estão dadas aí as condições
para se observar as perguntas fundamentais elaboradas pelo mestrando. Que papel
é reservado à política institucional nas aspirações de transformações sociais
no pensamento freireano? Qual é o potencial transformador atribuído à educação
oferecida por instituições públicas, sob sua tutela? Perguntas que me gera
outra indagação. O que poderia fazer, nesse lugar, alguém que estava “convencido
de que não era possível democratizar o ensino sem contornar as instituições da
democracia formal”? E para o qual a pedagogia “foi assumida como técnica de
subversão da ordem social”? Enfim, para alguém que, nas próprias palavras
(Freire apud Cunha, 2021), se achava um “professor numa esquina de rua”?
Não precisamos nos
alongar nas descrições das medidas adotadas pelo secretário em seus 29 meses de
comando – o que você já faz com muita qualidade na dissertação. Basta
considerar, contigo, de que a “futuridade revolucionária” de seu pensamento, à
espera da substituição total de “um sistema pelo outro”, trouxe desafios
irresolutos para essa experiência de “reconstrução institucional”. Barrada não
só porque não havia ocorrido a tão esperada “eventualidade revolucionária” (e
sua “sequência inexorável de fenômenos”), mas especialmente pela constatação de
que suas medidas “participacionistas” de descentralização do poder decisório
das estruturas burocratizadas do Estado acabariam por “congelar-se na força
desmedida das lideranças” em que ele tanto apostava.
Enfim, caro Rafael,
tenho a percepção que sua dissertação não só agrega valor aos muitos estudos já
realizados sobre a obra freiriana, como também inaugura um novo campo
interpretativo. Um novo campo interpretativo que, sem desconsiderar as suas
importantes contribuições sobre a relevância de relações pedagógicas baseadas
numa “ética do encontro”, não deixem de alertar sobre os riscos de um
pensamento educacional que, como você aponta, sobrevaloriza a agência educativa
em detrimento das instituições estatais. E que ao priorizar a práxis do
educador político, superestimando o agente que se quer “revolucionário”,
subestima a instituição escolar e, ao fim, não promove uma reflexão substantiva
sobre a importância de uma robusta política educacional e institucional mais
adequada às nossas necessidades prementes.
Creio que, desta forma,
não só teríamos uma melhor adequação do tamanho do legado freireano para a
Educação Brasileira, como também evitaríamos a sua abusiva utilização como
instrumento discursivo de destruição do que já conseguimos construir para a
edificação de um efetivo sistema nacional de ensino. Afinal, não faz sentido
nenhum culpar Paulo Freire pelo que ele não fez – tal como se ouve nos gritos
histéricos, cínicos e nada ingênuos, de uma direita extrema que, ao fim, só
quer por abaixo o que foi construído por outros atores. Refiro-me, claro, ao
legado de Anísio Teixeira, que articulando princípios liberais-democráticos com
elementos do trabalhismo, este sim, nos legou um mínimo vital institucional que
pode nos servir de ponto de partida para uma efetiva reconstrução da educação
nacional que em nada se confunde com preceitos desescolarizantes – que, por
contradição, acabam por unificar, ainda que involuntariamente, os extremos de
esquerda e direita. Tema, como sabemos, do seu trabalho de TCC, já publicado em
livro (Rocha, 2024), também muito bem orientado pelo colega Carlos Sávio.
Por fim, vale notar uma
pequena observação. Não é verdade que Paulo Freire não deixou algum legado
institucional. Claro, não é nenhuma “Escola Parque” de marca anisiana, nem mesmo os “CIEPs”
de Darcy Ribeiro e Leonel Brizola. Ele deixou um: o Instituto Capibaribe, que
foi fundado em 1955. E que hoje é uma das escolas particulares, “sem fins
lucrativos”, mais prestigiosas do seu Recife – emblema singelo, mas significativo
de sua perspectiva “desestatizante” da Educação Brasileira[vii].
Parabéns e obrigado!