Trilha Sonora

18 de dezembro de 2023

[Disciplina Obrigatória 2024.1] Sociologia da Educação I

 


[Sugestão de Leitura] A revolta de Demerara, por João José Reis

 

São Paulo, quinta, 13 de agosto de 1998 

A revolta de Demerara

JOÃO JOSÉ REIS

Emilia Viotti da Costa é um nome conhecido na historiografia do Brasil. É autora de um estudo clássico sobre a escravidão, "Da Senzala à Colônia", publicado pela primeira vez há 32 anos, cuja quarta edição acaba de sair pela Editora da Unesp. Tendo sido cassado seu direito de ensinar na USP pela ditadura militar em 1969, tornou-se professora da prestigiosa Universidade de Yale, nos EUA, onde escreveu, em língua que não é a sua pátria, um livro também destinado a tornar-se um clássico.[...] 

O livro deve interessar ao leitor brasileiro não só porque a escravidão alhures nos ajuda a pensar nossa própria história, mas porque é um modelo de pesquisa, narrativa e interpretação. É um estudo detalhado e profundo, o melhor sobre aquela revolta, baseado em extensa pesquisa em fontes impressas e manuscritas, escrito num estilo envolvente, em ritmo de aventura, não apenas para o especialista, mas todos que apreciam uma boa leitura. [...]

A revolta de Demerara foi uma das maiores nas Américas, envolvendo entre 11 e 13 mil escravos. [...]

O livro se desenrola em dois planos que se cruzam e complementam. De um lado a história de religiosos da London Missionary Society, oriundos das classes populares inglesas, que, imbuídos de zelo cristão e preocupações com reformas sociais, partiam para terras distantes e hostis com o objetivo de difundir a Bíblia entre populações "primitivas", entre as quais os escravos de Demerara. 

Do outro lado, estes escravos, sua opressão diária, os castigos, as proibições nas fazendas e engenhos, mas também seus sentimentos, modo de vida, cultura, anseios, a resistência cotidiana. Viotti monta o cenário da revolta reconstituindo o contexto histórico no qual se situavam escravos e missionários.

A religião alcançou uma dimensão libertadora nas mãos dos escravos de Demerara em 1823, fenômeno que se repetiu em várias regiões e períodos. Em muitos casos, inspiravam os rebeldes cultos a deuses e ancestrais africanos amiúde recriados e modificados sob a escravidão. Mas o Islã africano e o cristianismo, especialmente em sua vertente protestante, também serviram a rebeldia. [...]

Se há um personagem central no livro de Emilia Viotti, seu nome é John Smith. Ele chegou à colônia no início de 1817 e logo ganharia a confiança de seus catecúmenos. O templo que dirigia, a capela de Bethel, atraía centenas de escravos, levantando suspeitas entre os senhores de que o interesse destes pela escravidão não convergiam com os interesses daqueles pela religião. A historiadora insiste neste ponto. Bethel, ademais, além da função religiosa, se convertera em espaço de solidariedade entre cativos, local de convergência de suas redes sociais.

John Smith enfrentou muitas dificuldades para levar a cabo sua missão, algumas criadas pelos próprios escravos, mas a maioria pelos senhores e autoridades. [...]

O que mais frequenta as páginas do diário de Smith são seus embates com os escravistas, em particular os obstáculos levantados para a instrução religiosa dos escravos. Tudo era pretexto para impedi-los de se reunir para orar nas senzalas e frequentar o templo.

Se a experiência religiosa havia ajudado os escravos a aprofundar e sistematizar sua crítica à escravidão, outros elementos a ela se juntaram na mesma direção. Era um momento de mobilização abolicionista na Inglaterra, de campanha na imprensa, nas igrejas, no parlamento, nas associações operárias. Informações a esse respeito chegavam às senzalas nas colônias, muitas vezes por intermédio de escravos que, tendo aprendido a ler a Bíblia, liam também as folhas vindas da metrópole. [...]

Viotti reconstitui a rede complexa mediante a qual circularam os rumores, identificando os mediadores, as relações que mantinham entre si e com os brancos, como obtiveram e passaram as informações, quem vacilou, quem foi firme diante da decisão de rebelar-se. E aí ela revela que o mundo da capela foi apenas um dos nexos significativos na cadeia dos acontecimentos. Relações de parentesco, camaradagem, de trabalho, étnicas se combinaram para mobilizar os escravos, em muitos casos operando por fora dos laços da religião.

A rebelião mesma foi um desastre para os escravos. Houve problemas de organização e unidade de propósitos. Muitos conspiradores lutaram pela liberdade, outros quiseram apenas ver realizadas as reformas preconizadas pela metrópole. Mas por algumas horas os escravos viraram o mundo de ponta-cabeça nas fazendas, colocando senhores e feitores no tronco, insultando e castigando-os. Em geral foram contidos, não chegando a meia dúzia os mortos entre os brancos que, sabedores dos planos por denúncia, colocaram todo seu poder de fogo em ação. A repressão foi brutal e indiscriminada, com dezenas de execuções sumárias. [...]

O destino de Smith o leitor descobrirá lendo o livro.
Smith e sua religião na verdade haviam desempenhado um papel ambíguo no movimento. Por um lado, inspiraram muitos rebeldes, embora nunca de maneira direta, mas pregando que servir a Deus nem sempre era compatível com servir aos senhores. Por outro, o missionário tentou abortar o movimento no nascedouro, chegando a denunciar ao administrador de uma fazenda o que se passava nas mentes de alguns líderes e buscando convencê-los a desistir. [...]

Ao abordar a história miúda, vivida com intensidade por indivíduos carregados de conflitos íntimos, Viotti empresta credibilidade a seus personagens, tornando-os agentes dinâmicos dos acontecimentos que interpreta. Ao mesmo tempo insiste em que escravos, senhores, feitores, missionários, abolicionistas, administradores coloniais e metropolitanos estavam imersos num mundo maior, submetidos a forças históricas que não controlavam completamente. Este convite a uma história mais estrutural, no entanto, soa como declaração de princípio. O que torna este livro admirável é a habilidade da autora em demonstrar, por meio de uma narrativa empolgante, sem boçalidade acadêmica, que a liberdade de ação de cada um daqueles grupos foi limitada pelos interesses e projetos dos demais. A luta de classes em Demerara refletiu e repercutiu sobre os embates sociais e ideológicos na Inglaterra imperial, que dez anos depois aboliria a escravidão em suas colônias.


João José Reis é professor da Universidade Federal da Bahia e autor, entre outros livros, de "A Morte é uma Festa" (Companhia das Letras).

14 de agosto de 2023

[Artigo] Cotas: o que as manchetes escondem

Aproveitando a recém aprovação da renovação da "Lei das Cotas" pela Câmara dos Deputados, socializo um antigo artigo meu, publicado em 26/02/2003, há mais de vinte anos, no site Observatório da Imprensa, sobre o tema - e republicado na coletânea Escritos florestânicos sobre comunicação, educação e política (Kindle, 2021).

"Para além do mecanismo das cotas (que pode ser, dependendo da forma de implementação e da consciência de seus limites, um importante instrumento compensatório para históricas dívidas sociais), o que deve pautar as políticas educacionais é o debate sobre o modelo de desenvolvimento socioeconômico que o atual bloco político pretende implementar, o que, por sua vez, determina qual o papel do Estado na promoção dos direitos fundamentais do homem, no qual está incluso o acesso à educação, há muito proclamados nas declarações universais e na Constituição nacional".

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RESERVA DE COTAS

O que as manchetes escondem

Marcos Marques de Oliveira (*)

O "vestibular das cotas" da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, para além de seus defeitos e virtudes, teve o mérito de recolocar em pauta um tema há muito esquecido pela sociedade brasileira. Não falo aqui das posições pró ou contra as cotas étnicas ou por origem de instituição, assunto de quase todas as notícias relativas ao acontecimento. O que quero enfatizar é o voluntário desmonte da universidade pública, gratuita e de qualidade, processo que se consolidou com as políticas educacionais dos governos do intelectual Fernando Henrique Cardoso.

Não vai aqui nenhuma denúncia efusiva contra o renomado sociólogo, mas apenas o reconhecimento de que este resultado corresponde aos princípios filosóficos e éticos que permeiam o ideal político do grupo que representa. Na perspectiva do bloco de poder que assume a hegemonia das políticas públicas no período 1994-2002, estavam esgotadas as potencialidades do nacional-desenvolvimentismo, principalmente no que se refere ao papel destinado ao Estado.

Como destaca o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado de 1995, esse modelo mostrou-se superado por três motivos: a) pela crise fiscal, devido a crescente perda de crédito estatal, o que tornou a poupança pública negativa; b) pelo esgotamento da estratégia estatizante de intervenção do Estado; c) pela antiquada forma de administração estatal, caracterizada pela gerência política-burocrática.

O "novo Estado" idealizado pelo bloco político capitaneado pelo PSDB deveria deixar de ser responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social, tendo que se fortalecer como promotor e regulador deste processo. Sua função, portanto, estaria restrita a uma ação redistributiva dos bens sociais e ao cumprimento do clássico objetivo hobbesiano de garantir a ordem interna e a segurança externa.

Ciência e mercado

Para tanto, tornava-se premente a transferência para o setor privado das atividades que pudessem ser controladas pelo mercado. A privatização e a constituição do setor público não-estatal (o chamado "terceiro setor") seriam os grandes instrumentos de execução dos serviços que não demandariam o exercício do poder do Estado, mas apenas o seu subsídio. Neste campo, junto aos serviços de saúde e cultura, estaria a educação, principalmente no que se refere ao acesso do ensino superior e ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia.

A consequência dessa política na área educacional foi o selvagem processo de empresariamento do antigo 3º grau. O setor privado, segundo o Censo Escolar de 2001, detém 87% das instituições e 69% das matrículas. Enquanto, de 1994 a 2001, o número de alunos em instituições privadas cresceu de 970.584 para 2.091.529 (115%), nas instituições públicas as matrículas passaram de 690.450 para 939.225 (36%). Tal processo inverteu a tendência do período 1990-1994, quando o setor privado cresceu apenas 0,9%, e o público, 19,3%.

Uma avaliação incauta poderia argumentar que, de qualquer forma, o "negócio" cresceu. Sim, mas em que condições? De um lado, houve o sucateamento das instituições públicas de ensino, que sofreram com a mitigação de recursos e a desmobilização do seu corpo de funcionários, afetados pelo congelamento dos salários, a terceirização dos serviços de manutenção e as cada vez mais precárias condições de ensino e pesquisa. Só para se ter uma ideia, os valores das bolsas de mestrado e doutorado continuam hoje com os mesmos de 1994.

A exceção ficou por conta dos denominados "núcleos estratégicos" estimulados pelo poder político, que serviram para o acirramento da concorrência e inviabilizar qualquer resistência. Soma-se a isso o cada vez maior estreitamento entre a produção científica destes núcleos e os interesses do mercado globalizado, que através das fundações e das organizações sociais podem inviabilizar pesquisas de amplo interesse público e social.

Em vigor, o subcapitalismo

Do outro lado, a expansão privada mostrou sua face cruel. A multiplicação de cursos não acompanhou o investimento em infraestrutura, salário docente e condições de pagamento da clientela (apesar do esforço governamental em aumentar o chamado "crédito educativo"). O resultado, como demonstra a corrosiva disputa midiática entre universidades, centros universitários e faculdades isoladas, é a multiplicação de cursos de péssima qualidade, professores com inumanas condições de trabalho (salários atrasados, número exacerbado de aulas, vários vínculos empregatícios) e alunos humilhados com as estratégias de combate à inadimplência. Com esse quadro, dá para imaginar as condições de ensino-aprendizagem a que estão submetidos os futuros médicos, jornalistas, juristas, psicólogos, educadores...

Desta forma, para além do mecanismo das cotas (que pode ser, dependendo da forma de implementação e da consciência de seus limites, um importante instrumento compensatório para históricas dívidas sociais), o que deve pautar as políticas educacionais é o debate sobre o modelo de desenvolvimento socioeconômico que o atual bloco político pretende implementar, o que, por sua vez, determina qual o papel do Estado na promoção dos direitos fundamentais do homem, no qual está incluso o acesso à educação, há muito proclamados nas declarações universais e na Constituição nacional.

A continuar a sublimação deste debate, permanecerão as estratégias de precarização e privatização dos agora chamados "serviços" públicos, que deixam de ser pensados a partir das políticas de universalização e igualdade para dar lugar ao voluntarismo de uma pretensa sociedade civil homogênea e à clássica novidade das políticas promotoras da denominada equidade de oportunidades.

O horizonte das cotas, portanto, deve ser a universalidade do bem-estar social, que no caso do ensino superior se expressa na possibilidade de acesso de um público cada vez mais amplo a uma educação de qualidade socialmente referenciada que justifique sua gratuidade.

Terminando uma de suas teses, o sociólogo Fernando Henrique colocava a questão: subcapitalismo ou socialismo? Sei que a opção pelo segundo modelo, se é que ele existe, não é tarefa das mais fáceis. No entanto, a continuar o consenso que paira sob governo, sociedade e mídia deste país tupiniquim, as políticas de manutenção do primeiro estágio permanecerão sendo implementadas.

(*) Jornalista, cientista político e pesquisador da UFF; autor de O desenvolvimento da ação sindical do ensino privado brasileiro(Preal/Fundação Getúlio Vargas, 2001) e Os empresários da educação e o sindicalismo patronal (Edusf, 2002)

28 de junho de 2023

Vicente e Antonio: a história de uma amizade - Resenha de Alerrandro Adrian

 


Vicente e Antonio: a história de uma amizade*

Alerrandro Adrian

É uma conversa entre duas pessoas, ou melhor, entre quatro pessoas, o Jovem e o Velho Florestan se reúnem ao Jovem e ao Velho Antonio. A atuação de Walter Breda (Florestan Fernandes), José Augusto Zacchi (Florestan Fernandes jovem), Oswaldo Mendes (Antonio Candido) e Caetano O'Maihlan (Antonio Candido jovem), permite que nós vejamos o encontro desses dois amigos. As palavras que saltam dos papéis lidos pelos atores foram inspiradas em palavras enviadas há algum tempo, a peça foi baseada nas cartas trocadas entre Vicente posteriormente se “tornaria” Florestan – e Antonio, reunindo desde as primeiras cartas enviadas em fevereiro de 1942 até o fim da vida de Florestan, na década de 1990.

A peça “Vicente e Antonio" é de autoria de Oswaldo Mendes e foi lida por quatro atores, sob a direção de Eduardo Tolentino de Araújo, primo de Antonio Candido, e diretor do Grupo Tapa. A conversa segue de uma maneira maravilhosamente fluída e cativante, os personagens, Florestan e Antonio, se percebem fora de seu tempo original, estão nos dias atuais e dialogam muito conscientes de toda sua trajetória de amizade, relembrando os principais eventos que marcaram suas vidas, realizando citações específicas, em alguns momentos, das cartas que escreveram. Talvez o charme principal para essa conversa entre dois amigos, seja o fato de serem quatro pessoas a realizando, representando uma versão mais nova e uma mais velha de cada um, nos permitindo perceber o amadurecimento de Florestan Fernandes e de Antonio Candido.


O carisma dos atores nos permite fantasiar a amizade entre os dois, o amor e a admiração que sentiam um pelo outro, de fato, como dizem na peça, eles já eram mais que amigos, eram irmãos. A naturalidade com que seguem a conversa nos mantém presos, com os ouvidos curiosos, completamente atentos ao próximo detalhe, provocados a descobrir o que acontecerá, ou melhor, o que aconteceu.


Ao longo da peça podemos ver algumas das vitórias e derrotas, algumas das aventuras e desventuras de Florestan e Antonio, principalmente as de Florestan, afinal ele acaba sendo a figura central nesta narrativa, mas, falando em figura central, é possível notar que não se trata de mostrar todos detalhes ou mostrar como Florestan se torna o que foi, “Vicente e Antonio” é sobre a história de amizade que essas duas pessoas viveram, Antonio não seria o mesmo sem a amizade de Florestan, assim como Florestan também não seria o mesmo.


“Vicente e Antonio” é uma peça sobre duas pessoas que não se conheciam, que nasceram em cenários diferentes, mas se encontraram, se tornaram amigos, se tornaram irmãos, e por um tempo ficaram separados, mais longe do que qualquer carta possa alcançar, mas que certamente vão se encontrar mais uma vez.


* Resenha para a disciplina "Sociologia, Educação e Democracia em Florestan Fernandes", ofertada em 2023.1, pelo professor Marcos Marques de Oliveira, no Curso de Pedagogia do Instituto de Educação de Angra dos Reis (IEAR/UFF).

Link para a peça-filme: https://www.youtube.com/watch?v=8DeP2TJ3XXE


[Agenda] II Seminário "Sistema de Cotas na Educação Pública"

Inscrições abertas para o II Seminário Sistema de Cotas na Educação Pública, que acontecerá na UERJ de 22 a 24 de maio de 2024. Estaremos lá...